31 janeiro 2012

Procuro-te

Procuro a ternura súbita,
os olhos ou o sol por nascer
do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque
com a forma de um grito de alegria.

Oh, a carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água entre o azul
do prado e de um corpo estendido.

Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti, e o teu nome ilumina
as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.

Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferenças,
mas não quando se ama,
não quando apertamos contra o peito
uma flor ávida de orvalho.

Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.

Porém eu procuro-te.
Antes que a morte se aproxime, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol, à chuva,
de noite, de dia, triste, alegre — procuro-te.


Eugénio de Andrade, in "As Palavras Interditas"

24 janeiro 2012

No Fundo Somos Bons

O comum das gentes (de Portugal) que eu não chamo povo porque o nome foi estragado, o seu fundo comum é bom. Mas é exactamente porque é bom, que abusam dele. Os próprios vícios vêm da sua ingenuidade, que é onde a bondade também mergulha. Só que precisa sempre de lhe dizerem onde aplicá-la. Nós somos por instinto, com intermitências de consciência, com uma generosidade e delicadeza incontroláveis até ao ridículo, astutos, comunicáveis até ao dislate, corajosos até à temeridade, orgulhosos até à petulância, humildes até à subserviência e ao complexo de inferioridade. As nossas virtudes têm assim o seu lado negativo, ou seja, o seu vício. É o que normalmente se explora para o pitoresco, o ruralismo edificante, o sorriso superior. Toda a nossa literatura popular é disso que vive.
Mas, no fim de contas, que é que significa cultivarmos a nossa singularidade no limiar de uma «civilização planetária»? Que significa o regionalismo em face da rádio e da TV? O rasoiro que nivela a província é o que igualiza as nações. A anulação do indivíduo de facto é o nosso imediato horizonte. Estruturalismo, linguística, freudismo, comunismo, tecnocracia são faces da mesma realidade. Como no Egipto, na Grécia, na Idade Média, o indivíduo submerge-se no colectivo. A diferença é que esse colectivo é hoje o puro vazio. 
Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 2'

20 janeiro 2012

Lilya Corneli ou um olhar emotivo

Lilya Corneli (nasceu em 1978) é uma artista arménia ,vive  em Hamburgo / Alemanha, e começou a fazer fotografia em 2002.  Ela combina a arte da fotografia com um estilo único de pós-processamento no Photoshop. O seu trabalho é promovido pelas mais prestigiadas  galerias de fotografia de todo o mundo. Trabalha em Retrato,  Nu, Moda, e Natureza Morta.

Diz sobre as suas fotografias: "O meu trabalho sempre evolui a partir da  intuição. Eu entendo as minhas imagens como resultado de uma emoção que emergiu no momento  da sua criação, e não tanto como expressão de ideias visuais precisas . Minhas imagens parecem cruas, em estado natural,  por outras palavras:  simplesmente emocionais.  A melhor maneira para mim de  expressar estas emoções é a expressão visual.  "
 
 
 
  
 
 
 
 
 
 



17 janeiro 2012


Todos sofremos.
O mesmo ferro oculto
Nos rasga e nos estilhaça a carne exposta
O mesmo sal nos queima os olhos vivos.
Em todos dorme
A humanidade que nos foi imposta.
Onde nos encontramos, divergimos.
É por sermos iguais que nos esquecemos
Que foi do mesmo sangue,
Que foi do mesmo ventre que surgimos.
Ary dos Santos, in 'Liturgia do Sangue'

13 janeiro 2012

Histórias de papel

Nos trabalhos da artista britânica Su Blackwell os livros parecem ganhar vida. Nas lojas de livros usados  procura textos que a inspirem - romances,  contos de fadas, de botânica, etc. - e depois recorta delicadamente as páginas numa escultura de papel  que parece crescer a partir do livro. Com imaginação literária transforma-os em obras tridimensionais e faz as histórias brotar de literalmente dos seus livros.

 Su Blackwell diz das suas criações:
It is the delicacy, the slight feeling of claustrophobia, as if these characters, the landscape have been trapped inside the book all this time and are now suddenly released. A number of the compositions have an urgency about them, the choices made for the cut-out people from the illustrations seem to lean towards people on their way somewhere, about to discover something, or perhaps escaping from something. And the landscapes speak of a bleak mystery, a rising, an awareness of the air."
 
 

10 janeiro 2012

A vida

A vida, as suas perdas e os seus ganhos, a sua 
mais que perfeita imprecisão, os dias que contam 
quando não se espera, o atraso na preocupação 
dos teus olhos, e as nuvens que caíram 
mais depressa, nessa tarde, o círculo das relações 
a abrir-se para dentro e para fora 
dos sentidos que nada têm a ver com círculos, 
quadrados, rectângulos, nas linhas 
rectas e paralelas que se cruzam com as 
linhas da mão; 

a vida que traz consigo as emoções e os acasos, 
a luz inexorável das profecias que nunca se realizaram 
e dos encontros que sempre se soube que 
se iriam dar, mesmo que nunca se soubesse com 
quem e onde, nem quando; essa vida que leva consigo 
o rosto sonhado numa hesitação de madrugada, 
sob a luz indecisa que apenas mostra 
as paredes nuas, de manchas húmidas 
no gesso da memória; 

a vida feita dos seus 
corpos obscuros e das suas palavras 
próximas.
 
 


 Nuno Júdice, in "Teoria Geral do Sentimento"

06 janeiro 2012

Redesenhar a Cidade

Miso (Stanislava Pinchuk) tem trabalhado como uma artista de rua, combinando abordagens clássicas da arte às estéticas da “Street Art” e  do “Graffiti”. As suas instalações procuram recriar a sua cidade, usando as fachadas dos edifícios, entradas e portas,  escadas,  etc - para construir uma cidade/galeria (City of Reubens),com colagens de imagens de papel e madeira ,que se vão deteriorando como memórias no tempo.
Miso nasceu1988, Kharkov, Ukraine. Vive e trabalha em Melbourne, Australia.
 
 
 
 
 
 
 
 

 




03 janeiro 2012

Urgentemente

É urgente o amor
É urgente um barco no mar

É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos, muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer. 

Eugénio de Andrade, in "Até Amanhã"

01 janeiro 2012

Recomeça….

Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças…
Miguel Torga