29 maio 2012

Não o Sonho

Talvez sejas a breve
recordação de um sonho
de que alguém (talvez tu) acordou
(não o sonho, mas a recordação dele),
um sonho parado de que restam
apenas imagens desfeitas, pressentimentos.
Também eu não me lembro,
também eu estou preso nos meus sentidos
sem poder sair. Se pudesses ouvir,
aqui dentro, o barulho que fazem os meus sentidos,
animais acossados e perdidos
tacteando! Os meus sentidos expulsaram-me de mim,
desamarraram-me de mim e agora
só me lembro pelo lado de fora. 

Manuel António Pina, in "Atropelamento e Fuga"

22 maio 2012

A Solidão do Artista

Diz-se às vezes de certas pessoas, e para isso se reprovar, que têm dupla personalidade. Mas dupla ou múltipla têm-na normalmente os artistas. Ela é pelo menos a do convívio exterior e a do seu intimismo. Se trazem esta para a rua, são quase sempre insuportáveis. Só se suporta o que é de um profundo interesse, quando isso é rentável. Imagino que o capitalista tenha na sua vida íntima um mundo de cifrões. Se o cifrão vier à rua, tem ainda cotação. Mas o artista? Mesmo a coisa minúscula da sua pequena vaidade é irritante. Um político pode blasonar pimponice, que tem adeptos a aplaudir. O artista é um condenado, com o ferrete da ignomínia. O seu dever social é ocultar a degradação ou então marginalizar-se. Para efeitos cívicos ou mundanos, só depois de bem morto. A solidão é assim o seu destino. Aí sofre ou tem alegrias, aí obedece a um estranho mandato que lhe passaram na eternidade. Discreto, envergonhado, todo o seu esforço, no domínio das relações, é esconder a sua mancha. Nenhum povo existe senão pelo seu espírito. Somos o que somos pelo que foi excepção dos que nos precederam. Mas o dia a dia não é espiritual, e é esse que tem de se viver. Há uma lei injusta que condenou o artista como a outros condenou com uma deficiência física ou a serem tarados. Mas a um tarado (interrompido).

 Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 3'

18 maio 2012

Desenhar rendas como organismos naturais

Lenka Suchanek (nasceu na Checoslováquia, vive no Canadá) é uma designer especializada em rendas cujo trabalho é desenvolvido a partir do estudo da digitalização de imagens microscópicas de formas de vida que têm uma estreita semelhança com os padrões de rendas artesanais. A artista usa as imagens originais das estruturas celulares de organismos animais e vegetais e converte-as em projectos consistentes e lógicos.
O trabalho de Lenka Suchanek foi premiado em vários países (Canadá, Checoslováquia, Austrália, USA,Espanha, Itália) Para a execução das suas peças usa fio de metal (cobre, bronze, prata).

15 maio 2012

A Grande Originalidade

É curioso. Só se julga profundo o que disser coisas diferentes de toda a gente. E todavia a grande originalidade está em dizer as mesmas coisas, mas ao nível do espanto e maravilha que nos despertam. Toda a gente sabe que o homem é mortal, mas poucos vêem isso e se espantam de que seja assim. Toda a gente sabe que há bichos e plantas e estrelas e o mais. Mas conhecê-lo ao nível do extraordinário que aí existe é raro como ser doido.
A grande originalidade não é dizer coisas novas mas ser novo diante das coisas velhas.

Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 3'

08 maio 2012

Amo o Caminho que Estendes

Amo o caminho que estendes por dentro das minhas divisões.
Ignoro se um pássaro morto continua o seu voo
Se se recorda dos movimentos migratórios
E das estações.
Mas não me importo de adoecer no teu colo
De dormir ao relento entre as tuas mãos.

Daniel Faria, in "Dos Líquidos"

04 maio 2012

Heranças de familia

Erin Endicott ( New Jersey) é um artista têxtil que utiliza  tecidos e bordados antigos já usados para redesenhar as suas peças, evocando a história passada de cada uma. Para Erin, o acto de reparar,  de "trabalhar através de",  envolve mostrar as”feridas” e exercer sobre elas um quase cerimonial simbólico de cura, num processo lento e emocional de revitalização destes objectos que constituem a sua herança familiar. Numa atitude de apropriação contemporânea, pinta com corantes naturais e recupera bordando as manchas e buracos, mapeando iconograficamente a vida dos seus trabalhos.

Erin explica  o seu processo:
Antique fabrics, clothing and linens
My dowry passed down through generations
My history woven into this cloth
A fine cotton tablecloth
Lovingly mended by my great-grandmother
Becomes a little girl’s dress

Delicate cloth
Beautifully worn and threadbare
Stained by an artist’s hand
Walnut ink flowing into complex organic shapes
Subtleties of value, depth
Bringing the wound to life

Lost in the meditation of stitching
Repetition, contemplation
From within the fabric
Memories reveal themselves

Stitches, like words
The story grows
Lines graceful, unfurling
Drawing with thread
The Healing begins



 
 
 


01 maio 2012

A Vida não Está por Ordem Alfabética

A vida não está por ordem alfabética como há quem julgue. Surge... ora aqui, ora ali, como muito bem entende, são miga­lhas, o problema depois é juntá-las, é esse montinho de areia, e este grão que grão sustém? Por vezes, aquele que está mesmo no cimo e parece sustentado por todo o montinho, é precisamente esse que mantém unidos todos os outros, porque esse montinho não obedece às leis da física, retira o grão que aparentemente não sustentava nada e esboroa-se tudo, a areia desliza, espalma-se e resta-te apenas traçar uns rabiscos com o dedo, contradanças, caminhos que não levam a lado nenhum, e continuas à nora, insistes no vaivém, que é feito daquele abençoado grão que mantinha tudo ligado... até que um dia o dedo resolve parar, farto de tanta garatuja, deixaste na areia um traçado estranho, um desenho sem jeito nem lógica, e começas a desconfiar que o sentido de tudo aquilo eram as garatujas.

António Tabucchi, in 'Tristano Morre'